Saudações

A todos que viajam pela primeira vez nos tranqüilos e incomensuráveis rios da Literatura, Música e Cinema, sejam bem-vindos. Espero que gostem dos textos; alguns são textos acadêmicos, outros pura literatura, se assim considerarem o que escrevo como literatura. Pretensão à parte, desejo que sejam bem recebidos pela pena que uso nessa nova imersão em que me atiro.

domingo, 10 de junho de 2012

Guimarães Rosa - Um rio que corre pela linguagem

Guimarães Rosa - Um rio que corre pela linguagem

Erivaldo dos Santos

“O regionalismo, que deu algumas das formas menos tensas de escritura, estava destinado a sofrer, nas mãos de um artista demiurgo, a metamorfose que o traria de novo ao centro da ficção brasileira”.
(Alfredo Bosi - História Concisa da Literatura Brasileira)

È pela da leitura de Grande Sertão: Veredas que se pode entender certas preocupações estéticas: que os conteúdos sociais e psicológicos só entram a fazer parte da obra quando veiculados por um código de arte que lhes potencia a carga musical e semântica. A grande mudança estava na maneira com que os escritores iriam encaram a palavra. Para Guimarães Rosa, como os mestres da prosa moderna (Um Joyce, um Borges), a palavra é um feixe de significação, prenho de sonoridade, semanticidade, a cada som uma relação contínua entre o significante e o significado.
Há cinqüenta e nove anos era publicada uma pequena coletânea de narrativas que vinha para abrir novas veredas na ficção brasileira, essa coletânea era Sagarana. Existe nas narrativas Roseanas uma vontade que se distancia do comodismo da sociedade urbana, amarfanhada pela fumaça do cano de descarga de um carro qualquer. Rosa apresenta uma solução extra campo.
Suas andanças pelo sertão Mineiro, sertão que é um mundo, vasto mundo se ele se chamasse Raimundo não seria um nome seria uma rima, e de rima em rima, de sons em sons, de causos em causos; Rosa traça o desenho do mitológico sertão brasileiro, tudo caracterizado pela linguagem inventiva, poética que desfila desde o seu desconhecido livro de poesias Magma, cuja origem de seu lendário universo lingüístico tem a gênese da criação.
Manifesta-se no primeiro conto, Burrinho Pedrês, o inusitado, a travessia e o regresso, o cristianismo na metáfora da salvação pelo simples.
A narrativa inicia como um conto oral, em seguida criva-se a descrição do personagem-animal, sua nomenclatura desfila em tom de registro da idade:

(...) ERA UM BURRINHO PEDRÊS, miúdo e resignado, vindo de passa-tempo, conceição do serro, ou não sei onde no sertão. Chamava-se Sete – de - Ouros, e já fora tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual.(...).

O verbo no pretérito imperfeito desloca a noção temporal entre o preciso real e o imaginário lendário, o narrador intromete-se causando a sensação da primeira pessoa para dar um testemunho de fato, da fidelidade do narrado. Observa-se o mesmo recurso em Macunaíma, no último capítulo quando surgem dois narradores, o primeiro um papagaio que colheu os eventos do próprio Macunaíma, o segundo um homem andante que recebeu como herança do papagaio e conta em tom de cantoria, ponteando na sua viola para os ouvidos dos leitores.

(...) Tudo ele (o papagaio) contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meu carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo do cantado na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente.(...).

No conto de Guimarães Rosa a natureza manifesta-se, anuncia-se, serve de modelo e comparação:
(...) Como correntes de oceano, movem-se cordões constantes, rodando redemoinhos: sempre um vai e vem (...).
(...)
Agora, se alertam, porque pressentem o corisco. Esperam a trovoada bata pilão, na grota longe, e então se sobre-chegam e se agitam, recomeçando os espiralados deslocamentos
Enfarado de assistir tais violências, sete-de-ouros fecha os olhos. Rosna engasgado. Entorna o frontispício. E, cabisbaixo, volta a cochilar. Todo calma, renuncia e força não usada. (...).

A animalização (zoomorfismo) naturalista dá lugar a sabedoria do ingênuo, do desmerecido, ocorre a antropomorfização do animal.
(...) E sete-de-ouros que sabia do ponto onde se estar mais sem tumulto, veio encostar o corpo nos pilares da varanda. (...)
O burrico velho desmerecido é visto pelo narrador como um homem, ser real e pensante, estabelece-se uma inversão similar ao que ocorre na narrativa de Vidas Secas de Graciliano Ramos, a personagem considerada pela crítica como a mais humana dos tipos criados por ele, é a cachorra Baleia. Sensível à natureza e menosprezado pelos boiadeiros, o burrinho surpreende ao salvar a vida de Badu. Não basta esse saber é humano, é prescindível intui-lo do natural, é instintivo, animalesco.
Com o vaqueiro no lombo de Sete- de- ouros vestindo a água que se avizinha na enxurrada calma e sorrateira, conduz-se a vida, alheio ao companheiro, seu instinto indica o caminho de casa, sobrevivência:

(...) O burro pára. O mundo bóia [...], mas esperou foi para deixar passar, de ponta, um lenho longo, que vinha com o poder de uma testa de touro. Desceu, sumiu. (...)

Observa-se na hipérbole metafórica inter-relacional “o burro pára, o mundo bóia”, a intensidade da chuva desperta no animal a certeza da sobrevivência (o parar); chove um dilúvio, o mundo rende-se às águas do rio da Fome, a barriga da cobra que come, devora os homens que ousam desafiar a mãe-natureza (mãe-da-água).
A veracidade do relato é dada pelo discurso direto; cada passagem ganha credibilidade pelas próprias bocas dos personagens, tornando o leitor testemunha auricular dos fatos descritos.
Em dado momento, anterior ao parar do burro, diante da anunciação premonitória de um “ João corta-pau”, entoado a agouro ou revelação, o personagem João Manico, sente que não seria de bom tom continuar viagem, pressente o mal das águas:

(...) Eu não entro a modo e coisa que esse passarinho ou veio ficar aqui para dar aviso para mim, que também sou João, ou então ele está mas é agourando... Para mim, de noite, tudo quanto há, agoura.(...)

No retorno de Macunaíma, depois de fugir do Curupira, de se transformar em adulto, apesar da cabeça de Piá, ele encontra a mãe e relata um sonho:

(...) Mãe, sonhei que caiu meu dente.
Isso é morte de parente, comentou a velha. (...).

Guimarães continua a pesquisa de Mário sobre o repertório popular, porém, dá ao texto folclórico, ares de trágico, num movimento cadenciado pela fala, pelo imaginário, pela superstição. Em Macunaíma, sucede a morte da mãe como brincadeira de uma entidade que a transforma em veada, Macunaíma atira flechas no animal, ao chegar perto, descobre que havia matado a própria mãe. Em Sagarana, a leitura dos sinais dá ao leitor-personagem a vida, João Manico escapa da morte na enxurrada, ao passo que os que desdenharam de sua crendice foram mortos, tragados pelo rio.
A leitura dos sinais: escuridão, trovões, umidade, agito dos pássaros, é uma relativa interação entre homem e natureza.
Falando de suas relações com a natureza, Guimarães Rosa destaca a presença do rio constante no sertão e na travessia de suas personagens:

“... Em outras palavras gostaria de ser crocodilo um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um ‘magister’ da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um amar de sabedoria ... Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois sã profundos como a alma de um homem. ... Sim, o rio é uma palavra mágica para conjurar a eternidade.”

Referendando-se por esse aspecto; antitelectualismo, Guimarães ao escrever para seu tradutor italiano disse:
“.. quero afirmar a você que, quando escrevi, não foi partindo de pressupostos intelectualizantes, nem cumprindo nenhum planejamento cerebrino-cerebral, deliberado. Ao contrário, tudo, ou quase tudo, foi efervescência do caos, trabalho quase mediúnico.... meus livros, em essência, são’ antiintelectuais” – defendem a altíssimo primada da intuição, da revelação, da inspiração sobre o bruxolear ... da razão.”

Guimarães era místico, religioso, impregnado de hinduísmo, metafísico, taoísta, para ele a natureza revela-se na descoberta do homem de seu significado universalizante.
À semelhança de Caeiro, heterônimo de pessoa, ele estabelece um priorado contra ao racionalismo, o não pensamento, elege a natureza como algo superior ao urbano, ao civilizante, porém, em um lance dialético, Guimarães Rosa é metafísico, fato que o distancia do sensacionismo: entender o mundo pela visão, pelo olfato, tato, uma visão:

Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Apesar das diferenças, o heterônimo de Fernando, Caeiro tem muito em comum com o pensamento roseano:

Procuro despir-me do que eu aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a natureza produziu.

Outro ponto em comum está na visão que os dois “poetas” têm da natureza do rio:

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia .
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia.

(...)

Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América e afortuna daqueles que a encontraram
Ninguém nunca pensou no que pra além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.

Em Sarapalha, é pelo rio que a maleita avizinhou-se, alojando-se na casa de Primo Argemiro e primo Ribeiro; é pelo rio que o primo ribeiro perde sua Luisinha para um forasteiro. Marcada a traição pela memória dos primos que entoam a cantiga, num mote que serve de lembrança da traição e ao mesmo tempo de elo último da imagem de Luisinha com o sentimento perdido nas águas do rio:

(...) Então quando os dois estavam fugindo na canoa, o moço-bonito, que era um capeta, pegou na viola, tirou uma toada, e começou a cantar:
No livro Primeiras Histórias, o conto “A Terceira Margem do Rio”, um conto poético misterioso, o rio desempenha um papel fundamental, nele o filho conta a estranha sina do pai, homem calado e cumpridor, que de repente se extravia da existência comum. Constrói uma canoa, para com ela viver no rio.”Sem alegria, nem cuidado, nosso pia encalcou o chapéu e decidiu um adeus para agente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez alguma recomendação”.
O pai ficara lá na canoa, sem ilhas, sem chão, sem saltar em terra” sem fazer conta do se-ir-viver”.
O menino acompanhara, esperara, porém, em vão, envelhecera aguardando o retorno. Um dia, já velho grita ao pai, da margem do rio, que deve tomar-lhe o lugar... O pai vem “da parte de além” em sua direção, concordando, mas ele foge, num procedimento desatinado.
Arrependido pede que seja sepultado numa “canoínha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras e, eu rio abaixo, rio a fora, rio adentro – o rio”.
Ainda em Sarapalha, a natureza envolve o personagem Argemiro numa nuvem de mistério e êxtase final, funde-se o estado febril dele com a descrição psicodélica da natureza:

(...) Agora é sentar nas folhas secas, e agüentar. O começo do acesso é bom, é gostoso: é a única coisa boa que a vida ainda tem. Pára, para tremer.
Estremecem, amarelas, as flores da aroeira. Há um frêmito nos caules rosados da erva-de-sapo. ... trepidam, sacudindo as suas estrelinhas alaranjadas, os ramos da vassourinha, tirita a mamona, de folhas peludas, ... A pitangueira se abala, do jarrete à grimpa.
E o açoita-cavalos derruba frutinhas fendilhadas, entrando em convulsões.
É o mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão.(...)

Guimarães Rosa tece à margem de uma escrita literária regionalista, um modelo que coloca o homem simples (o sertanejo, o jagunço, o capiau) dentro do universo acadêmico, sua linguagem dialoga com certos aspectos de Fernando Pessoa (Caeiro) a dita mediunidade no processo criativo em relação aos heterônimos pessoanos; a Natureza magister, o rio que corre em sua simplicidade, o não intelectualismo / não-pensamento; distanciam, é bem verdade, na visão materialista, sensacoinista de Pessoa e da metafísica que há na prosa poética Roseana.
Corre nos textos de Guimarães Rosa um rio de maravilhas e assombramentos, quiçá linguagem solta e presa nos galhos de uma enxurrada, é preciso jeito para beber da água de Guimarães Rosa, aceitar a natureza como ela é, com (Rosa) ou sem mistério (Caeiro).

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