Saudações

A todos que viajam pela primeira vez nos tranqüilos e incomensuráveis rios da Literatura, Música e Cinema, sejam bem-vindos. Espero que gostem dos textos; alguns são textos acadêmicos, outros pura literatura, se assim considerarem o que escrevo como literatura. Pretensão à parte, desejo que sejam bem recebidos pela pena que uso nessa nova imersão em que me atiro.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Conto: A liberdade após a porta

A liberdade após a porta

Erivaldo dos Santos

Um corpo pede caminho a um deus que o engana na despedida dos gritos e nem sabe se o silêncio se faz na ausência dos pensamentos, pois é este o segredo enigmático que se compõe diante dos olhos do retratista que afoito espera o aceno e sorri ao rapaz num copo cravado de lábios adocicados pelo desejo impuro de dois corpos iguais.
Fica então deitada, ensimesmada no abandono dos ideais e passa entre um suspiro desenganado de adeus, a pequena dama do quarto vermelho que acena em lágrimas confusas.
A janela apenas estala o vento que ardilosamente sopra a tempestade em fios cabelos negros pela sedosa cortina, os olhos a espreita da chegada, um olhar perdido na noite, passos tímidos, gestos contidos, nada pode assustar o desejo que impreciso se manifesta quieto e lívido por entre as frestas das paredes.
Na rua, o vento celebra uma sinfonia tímida e imprecisa.
Lívia sentia a solidão tocar-lhe o peito, não compreendia porque fora deixada na porta de um altar feliz e duradouro; a mãe sempre a espreita de um casamento rentável, não poupava esforços para conduzi-la a um novo relacionamento, o pai, bonachão, não ligava que a filha voltasse para casa, afinal era a única de um bom casamento, mesmo sendo um casamento de fachada, pois casara-se com Glória, porque o sr Pedro era um bem sucedido empresário no ramo de couro.
Os domingos cheios de cerveja e carne, o jornal da banca, o futebol, as tardes e a menina no colo, todas as coisas que animam um simplório pai-avô, contudo, o tempo lhe furtava a vontade de viver. As semanas arrastavam-se, as lojas do falecido sogro já não lhe rendiam nenhum fruto capitalista, talvez a falência.
Um dia, a filha entrou em casa e viu o pai deitado, boca aberta, olhos vítreos, mãos estanques sobrepostas ao peito, o silêncio respirava o ar do quarto, ela , a filha, aproximou-se dele, o pai, quis tocá-lo, porém o receio a impediu, ficou ali, apenas ali, não se sabe quantos sopros de vida passaram pela sua cabeça, quantas tardes no parque, quantas idas a quinta de seu mane; ela estava ali, a filha, a observar ele, o pai, velho, cabelos grisalhos, boca aberta, olhos vítreos, mãos postas, e um ronco infernal de acordar todos os defuntos do inferno.
O domingo passou sonolento, o calor da calçada esvaía grotescamente por sobre os pés descalços dos moleques que jogavam futebol. Caminhavam os olhos em torno da bola que atravessava os dois marcos postos em extrema posição, as mãos atentas aos movimentos dos corpos, num baile derradeiro e frenético do roçar suado dos pés sobre a esfera feita de pedaços de couro cortado, sobra de um bovino abatido.
Da janela, espiava com sobrancelhas erguidas, no canto da boca um cigarro fino, a fumaça travava a respiração que era ofegante e inquieta, pasma com o jeito passivo com que os jovens se atiravam para a vida, atrás de si, o pai roncava, esbaforido e torturante em espaços cada vez menores, as paredes oscilavam diante do ruído provocado pelo som ensurdecedor, oriundo das entranhas daquele ser balofo. Subitamente a trajetória da esfera de couro fora cortada por um chute na transversal, pequeno ricocheteio em uma quina de parede, subira a uma velocidade de metros, incomensurável, saíra em órbita, retorno fogoso sobre as mãos do arqueiro, que inutilmente tentava interceptar o destino da agora oval esfera recém transformada pela pressão do ar contra o corpo físico. O defensor atira-se, toca com as pontas dos dedos um dos pólos do objeto voador, resvala num vaso de rosas vermelhas, derruba-o, espatifa-o em inúmeros fragmentos, grãos, pétalas, vermes, insetos, cacos, vida e morte.
Já é noite, as cortinas fecham-se com medo do luar que insite em entrar, penetrar furiosamente, porém é impedido pela luminosidade, fruto da eletricidade, capítulo novo da modernidade. Lívia caminha a passo largos, a casa é cortada pelo seu movimento sensual e triste; o pai já não está dormindo, afinal relinchou a tarde toda, resta-lhe a inquietação de quem não tem o que fazer com os dias que passam rapidamente pela cabeça, pelos braços e pelo estômago.
A filha senta numa cadeira de tecido vermelho, estende a mão direita e pega um livro, esfolheado e largado em outras tentativas de leitura, o pai também se senta diante dela, coça o queixo, olha pela janela, a rua ainda mantém o murmúrio da tarde que se esconde dando lugar à noite que chega com a boca aberta, querendo engolir os poucos restos do dia que se pôs há tempos. Os olhos confusos do pai param diante dos olhos da filha, tristes em lágrimas soluçam; convalescente estende as mãos em torno do rosto gélido da sua pequena menina, os dedos anseiam o toque que se ensaia no ar num gesto quase paternal, suspenso talvez pelo medo do desejo perdido desde a infância de Lívia “– Por que você não tenta?” “Tentar o quê pai?” “Tentar, tentar... quem dorme sou eu e não você!!!” – Silêncio... Respiração... Silêncio... Respiração... “– Vou sair pai!” – Ela se joga para cima com uma força fenomenal rompendo a imutabilidade do corpo, com a língua enrolada com o que disse a filha, o progenitor num súbito lance de sorte, pois o corpo pendia sempre para a esquerda em decorrência do peso que o incomodava, devido ao sedentarismo amargo que se arrastava durante anos, ergue-se em guindastes existenciais que o sustentam sobre os dois pés, bípede era aquele homem, porém quase quadrúpede – Aonde você vai? A noite está caindo, pode uma moça andar tranqüila pelas ruas sem que seja molestada por algum qualquer? Que me diz? Dizia acabrunhado, escorando-se nas costas da poltrona. – Não sei aonde estou indo, só sei aonde quero chegar. Respondeu, dando de ombros e andando rapidamente até a porta da sala; toca a maçaneta, torce-a na mão, aperta em entre os dedos, gira e puxa a porta para perto de si. A rua mostra-se em inquieto fervilhar de idas e vindas, os carros circulam de um lado a outro, gentes falam, espiam. Apontam, olham, caminham em sôfrego respirar mofado, plausível pelo calor que levita das calçadas, o cheiro de querosene queimando mescla-se com o das panelas de barro que ardem a gordura de porco, o vento sussurra pálidos assobios e gajos desfilam o cravo na lapela no terno risco de giz. Ela cheira essa multidão babilônica de gostos, cores, odores e movimentos, desce as escadas pequenas que dirigem os pés ao primeiro sinal da libertação, passos, sutis passos são dados; um branquinho estende o braço direito, o rosto ainda marcado pela puberdade, o sorriso maroto na face, atravessando a esteira da calçada passa por ele, deixa atrás de si os olhares atônitos, caminha num balouçar de ancas e pernas, o vestido mistura-se neste ritual de bocas e olhos, cuja arte da sensualidade está em se esconder, sem se ocultar por demais.
Ficaram a lua, os grilos e as estrelas, todos os elementos daquela natureza pura que os românticos admiravam tanto, ficaram contemplando o despertar de uma mulher que se abandonou ao sortilégio dos dias vindouros. O pai, pálido que era permaneceu ali em seus aposentos, flácido e em benévolos pensamentos a reflexionar sobre a possível decisão da filha, descobriu então que a menina se fora, que no lugar da chorona e triste criatura estava surgindo uma outra pessoa, outrora impossível de ser. Talvez ela esteja uma mulher e quiçá ainda seja uma garota.

Um comentário:

Anônimo disse...

Resolvi te mandar um website com um texto raro de Machado de Assis, espero que você goste. Quando abrir o site, procure na barra de buscas do canto direito por: "Machado de Assis raro"

www.blubster.com

Abraços

Obs.: Uma parte do texto está em inglês pelo fato do website ser internacional.

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